Não existem palavras na língua portuguesa para descrever o casamento de Preta Gil. Precisaríamos da precisão zombeteira de Oscar Wilde. Da capacidade de indignação de Eduardo Galeano. Da compreensão do subdesenvolvimento de V.S. Naipaul. Do ouvido apurado e brutal de um Norman Mailer.
Sem um milésimo do talento de nenhum deles, resta focar nos fundamentos do jornalismo: siga o dinheiro.
Quem pagou pelo vestido com trocentas pérolas? A festa para 700 convidados? Os 35 seguranças, os 14 lustres com cristais baccarat, milhares de flores, whisky e champagne? O aluguel da Igreja Nossa Senhora do Carmo, a mais fina da cidade? A descrição é indescritível: “o grande movimento de carros nas ruas estreitas de Santa Teresa causou um nó no trânsito, já que os convidados param em frente à casa para entrar no evento. Alguns ônibus não conseguiram passar e passageiros desceram a rua a pé reclamando.”
Sabemos quem não pagou: o noivo, personal trainer. E sabemos o que não pagou: a carreira de Preta Gil. Tudo que ela toca vira fracasso. Grava discos que ninguém compra, faz shows que ninguém assiste, não emplaca em mídia nenhuma. É a eterna candidata a celebridade. Jamais decolou ou decolará. Pode andar 50 quilômetros por qualquer grande cidade brasileira e não será reconhecida. Resta a figuração boba-da-corte em programas de TV estrelados e dirigidos por seus amigos.
Também sabemos que o casamento não foi pago por seu reality show na internet, “Preta Vai Casar”. A média de audiência de cada vídeo foi perto de 100 mil visualizações. O valor de mil visualizações no YouTube é quase R$ 10,00. Donde que cada vídeo desses vale, no mercado de internet, uns mil reais. Não paga o bolo.
Talvez papai e mamãe, Gil e Flora, empresária do cantor? Espetáculos de desperdício como esse não são raros. Os ricos do Brasil festejam como se o mundo fosse acabar amanhã. Casamento de filha é oportunidade única para se exibir. A nova onda entre os muito ricos é promover festa de debutante para as filhas em Nova York ou Miami. Soube de um banqueiro que tem problemas com a filha adolescente, porque seu helicóptero é o mais simplezinho entre os pais de suas colegas de classe. E por aí vamos.
Mas esse não é só o casamento da filha de um homem rico, de um ex-ministro. É uma reunião de algumas das pessoas mais famosas do Brasil. Algumas muito amadas pelo povão. Outras sem fama, mas perfeitas ilustrações do que é feito o nosso país. Desconhecia o casal Amora Mautner e Arnon Collor de Mello. Ela é filha de Jorge Mautner, ele de Fernando Collor. A poesia alternativa, a tirania alagoense, é tudo a mesma coisa. A arte no Brasil sempre acaba em farsa.
Como se fala sobre reuniões de empresários, “estava lá todo o PIB”. No casamento de Preta Gil estava lá boa parte do PIB cultural brasileiro. Gente que vive “na mídia” e da mídia. No Brasil o capital que importa é a proximidade do poder - midiático, financeiro, e em última instância, estatal.
Por isso é que o Rio continua sendo nossa verdadeira capital. Brasília é um arrabalde aberto de terça a quinta. São Paulo amanhece trabalhando. O Rio é o lugar da fama e do poder. Do dinheiro público, que move as engrenagens da fama e do poder. Ninguém nas nossas artes personifica esta proximidade proveitosa do poder tão bem quanto Gilberto Gil. Conforme sua carreira decaía, se transmutou em ongueiro, político, ministro.
Neste Brasil sem água nem esgoto, homicida, burro, febril de dengue, existe um instrumento perfeitamente legal para artistas tomarem o dinheiro dos impostos e botarem nos próprios bolsos. São as leis de incentivo à cultura. Através delas, empresas deixam de pagar imposto, pegam esse dinheiro e financiam atividades culturais.
Quais empresas? As grandes, e se forem estatais, Petrobras etc., melhor ainda, que fica tudo em casa. Quais atividades culturais? Qualquer uma que o Ministério da Cultura aprovar para “captação”. Gil foi o ministro anos; seu secretário-executivo, Juca Ferreira, é o atual. Pintou uma graninha boa para o próprio Gil, assim que deixou o ministério, claro.
Sob eles, milhões e milhões de reais foram “investidos” pelas empresas amigas nos negócios dos chegados. Porque são isso, negócios, certo? Quando você embolsa dinheiro público para bancar seu show, seu DVD, sua exposição, sua turnê, está fazendo um negócio, e ótimo, porque sem risco. Se ninguém aparecer para assistir ao filme que você produziu, dane-se, você já ganhou o seu. É o que acontece com 90% dos filmes bancados via lei de incentivo. É uma excrescência e uma propina disfarçada. Compra a cumplicidade da classe artística, que a vende baratinho.
É tentador chamar o casamento de Preta Gil de Baile da Ilha Fiscal. Para os que não conhecem nossa história: foi uma festança perdulária que aconteceu numa ilhota na baía da Guanabara, promovida pelo Império, a última antes da proclamação da República. É fato que o festerê de fazer “cultura” e encher o cofre com dinheiro do contribuinte vai diminuir esse ano.
As verbas de marketing das empresas minguarão em 2015. Temos recessão, desemprego e juros altos, e há de piorar. Lá no Planalto os cofres também secaram. O plano do nosso governo para combater a recessão é aprofundá-la, promovendo um arrocho bilionário, que, triste informar, mal começou.
Então vai ter menos dinheiro nosso correndo para as contas dos convivas do banquete. Ou um pouco menos. Mas não desperdice lágrimas com os ricos e famosos. Quem tem dinheiro no banco verá ele se multiplicar em 2015 como nunca vimos no Brasil, pátria dos juros mais altos do planeta.
Quem é chegado dos poderosos sempre garante suas bocadas. Juca Ferreira está lá no Ministério para garantir que o que tiver de verba, vá para as mãos “certas”. O casamento de Preta pode durar para sempre ou acabar semana que vem, que é o que acontece frequentemente com esses enlaces espetaculosos. O descaramento é para sempre.
Não nos faltam só palavras para descrever o que foi esse casamento de Preta Gil. Nos faltam também escritores. Cadê coragem para encrespar com a filha de Gil, eterno ministro e amigo dos amigos? Nossos autores vivem de cachêzinho em seminário patrocinado pelo governo, de edital do governo, de vender livros para o governo. Não ouvirás questionamento a Gil e companhia por parte dos nossos literatos. Precisaríamos de uma versão tupi de Gore Vidal, um bem-nascido que se especializou em cuspir no próprio berço. Ou Louis Auchincloss, advogado, dinheiro velho, que passou a vida escrevendo sobre dinheiro - e como ele nunca sai das mesmas mãos.
Não temos nada parecido. Pena. Precisamos muito de alguém com o talento e a coragem para tranformar em literatura a seguinte notícia, de dezembro de 2014, semanas antes de Juca Ferreira voltar ao ministério: "o Ministério da Cultura autorizou a captação de R$ 6,5 milhões de reais para a peça Gilberto Gil, o Musical. O valor prevê seis meses de apresentação em São Paulo e seis meses no Rio."
fonte:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Mensagem do formulário de comentário: